Corre!


(Rua da Consolação, São Paulo, 1947)
   Mal saiu da mesa do almoço e foi logo correndo, animada, pedir à mãe na cozinha:
-       --- Mãe, vou brincar na casa da Nelly, tá?
-       ---Tá bom, mas volta logo que seu tio vai chegar às duas.
Marly costumava pedir a algum adulto para atravessar com ela a rua de paralelepídos e com extensão quilométrica aos seus olhos e estatura de 4 anos de idade. Neste dia não foi diferente, mas, ao invés de pedir a um transeunte, ela o fez à vizinha,  que estava na varanda de casa, vestindo um longo penhoir de cetim azul-claro. E que, por estar de penhoir, achou que não precisava ir além do portão para ajudar a garotinha. Ao ver o bonde parar uns 20 metros acima do local da travessia, Dona Estefânia gritou para Marly:
-       --- Corre!
E Marly se recorda, primeiro, dos tamanquinhos que lhe voaram dos pés. Depois, aos poucos, vão chegando outras recordações: ela mesma sendo lançada da esquina da Antônio Carlos até quase a esquina da Matias Aires. O baque da cabeça nos trilhos do bonde. O chão quente sob o sol escaldante de uma da tarde. Sua impossibilidade de mexer o braço, doendo como nunca. A confusão de muitos adultos debruçados sobre ela, imagem embaralhada na visão que esvanecia-se. A chegada de sua mãe, que perdeu a voz ao ver a barriga de Marly ensanguentada. Atônita, Dona Vanda não conseguiu soltar sequer um grito de horror, nem conseguia argumentar com as pessoas que diziam:
-       --- Tragam uma bacia com água para lavarmos a menina e vermos onde é o corte!
Vinha à boca de Dona Vanda, mas não saía:
-       --- Mas ela acabou de almoçar, não pode tomar banho! “Coisa do tempo de nossos avós”, dizemos hoje.  Passei a infância ouvindo que não, ainda não podia entrar na piscina... “o irmão do seu avô morreu assim, de congestão”. Até hoje não sei se é mesmo verdade ou se era apenas um jeito – dramaticamente italiano – de acabar rapidinho com minha insistência. E acabava.
Impossibilitada que estava de falar, Dona Vanda correu casa adentro e voltou com uma xícara de água. Os vizinhos já pensavam: coitada, além de muda, ficou doida.
Um deles foi logo avisando o motorista do táxi verde escuro que, havia minutos, crescera, crescera aos olhos de Marly e por fim a abalroara:
-       --- Rapaz, a menina morreu! Suma daqui, pois o pai dela é barbeiro e o mínimo que vai fazer será cortar seu pescoço com a navalha!
O moço, desesperado, escafedeu-se. Mas, na manhã seguinte, voltou, chapéu na mão, para o enterro da criança.
Àquela altura Marly convalescia no Hospital São Jorge, próximo de onde hoje é o Cine Belas Artes (não, este já se foi também). Passou 24 horas sem enxergar. De lá, saiu com um braço engessado e com um par de óculos, que usa até hoje.
Será por isso que, ao atravessarmos juntas qualquer rua, movimentada ou pacata, minha mãe aperta bem firme minha mão?

OLHA O BONDE !

foto: ©Hildegard Rosenthal

Conrado foi a pessoa mais cuca-fresca e desligada que já conheci. Meu avô paterno. Viraram folclore na família as cenas protagonizadas por ele e minha avó, sempre alerta e protetora diante de uma cabeça eternamente nas nuvens.
Ele dirigia seu idolatrado fusquinha cor de creme e ela, de co-pilota, quase furava a coxa direita dele com o dedo indicador a cada advertência que fazia sobre o trânsito e seu “estilo” de conduzir.
Certa vez estavam numa avenida de São Paulo quando minha avó alertou:
-       – Conrado, olha o bonde!
-       – Tô vendo, mulher!
-       – Conrado, olha o bonde!
-       – Tô vendo, mulher!
-       – CONRADO!!! OLHA O BONDE!!!!
Scriiinch! O desvio foi por um triz, habilidade pura do meu avô avoado que pensava estar indo o bonde, quando ele estava vindo!

[Hildegard Rosenthal (1913-1990), nascida em Zurique, passou a adolescência em Frankfurt, na Alemanha, onde estudou fotografia com Paul Wolff, especialista do Instituto Gaedel. Veio para o Brasil fugindo do nazismo, e chegou em São Paulo em 1937. Convidada pela agência Press Information para ser fotógrafa em reportagens para veículos nacionais e internacionais, documentou São Paulo, Rio de Janeiro, o interior paulista e cidades do sul do Brasil. Junto com os fotógrafos Militão Augusto de Azevedo (1837-1905), Guilherme Gaensly (1843-1928) e Aurelio Becherini (1879-1939), Hildegard Rosenthal construiu boa parte da memória fotográfica de uma São Paulo que não existe mais — especialmente a São Paulo dos anos 40. Suas fotos permaneceram pouco conhecidas até 1974, quando o historiador da arte Walter Zanini realizou uma retrospectiva de sua obra no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo – MAC/USP. Em 1996, o Instituto Moreira Salles adquiriu mais de 3 mil negativos de sua autoria, dos quais a imagem acima faz parte, e que resultaram em um livro: Metrópole (2010). Fonte: http://veja.abril.com.br/blog/ricardo-setti/tag/hildegard-rosenthal/]

POLARIS, agora na USP, acervo permanente

Para quem nunca viu minha exposição POLARIS, 80 dias de veleiro pela Antártica e Geórgia do Sul, um recorte dela agora faz parte do acervo permanente do Museu de Geologia da USP. São 15 imagens, sendo que foram acrescentadas algumas feitas no verão de 2011, como esta da foca-de-weddell. A exposição comemora a abertura, hoje, do XIX Simpósio Brasileiro sobre Pesquisa Antártica, que celebra ainda os 30 anos de estudos brasileiros na região.

Gatos são interessantes


GATOS NÃO SÃO INTERESSEIROS, SÃO INTERESSANTES. Não poderia haver frase melhor para acabar de vez com esta crença (quase) geral de que gatos gostam da casa e não do dono, que são egoístas, que só se aproximam quando querem, que são traiçoeiros....
Sempre fui louca por cachorros e tive vários desde a infância. Acho que meus pais concordavam com algo aí do parágrafo acima, pois só adulta pude começar a ter gatos. A primeira a chegar foi uma vira-latinha “frajola” resgatada ainda bebê do alto de uma árvore. Logo em seguida adotamos dois legítimos caiçaras nas ruas da Ilhabela: um todo preto e um todo branco. Já nossa “siamesa” é assim, bem entre aspas, pois sabemos que a mãe dela era preta como carvão.
Todos os nossos gatos estão sempre por perto, solicitando carinho, atenção, colo. E dando muito carinho, também. Gatos se identificam muito com seus donos, em muitos casos até mais do que cães. São extremamente companheiros e sensíveis. Se alguém da família adoece, por exemplo, pode ter certeza que o gato não vai desgrudar daquela pessoa até ela sarar.
Este todo branco adora brincar com uma bolinha de papel e, acredite, traz a bolinha de volta na boca pra você jogar de novo para ele.
Gatos arranham sofás e cortinas? A maioria, sim. Mas você prefere a companhia adorável de um ser que afasta seu eventual mal humor com um ronronar irresistível ou móveis impecáveis? Se preferir a primeira opção, aqui vão sugestões de locais onde adotar um gatinho:


IMPRESSIONANTE


IMPRESSIONANTE a notícia do início deste ano sobre os Moais de Rapa Nui (Ilha de Páscoa)? De que equipes de pesquisa vêm escavando o entorno das estátuas que até agora eram apenas grandes cabeças e descobriram que elas têm corpos? Ou seja, que seriam como icebergs, com sua porção maior fora de visão, não fossem as cabeças sempre maiores que os troncos?
Na verdade, a maioria dos 887 (impressionante!) Moais já se mostra sobre altares – os chamados ahus - com cabeças e corpos. As equipes estão escavando os arredores das cabeças que despontam em Rano Raraku, o local conhecido como “fábrica de Moais”, próximo à pedra-mãe de onde as estátuas foram esculpidas e retiradas.
IMPRESSIONANTE imaginar que a construção dos Moais começou no ano 1250 e foi até 1500 como um ritual, uma forma das famílias rapa nui homenagearem seus antepassados. Reza a lenda que cada família queria se sobrepor em tamanho à homenagem da outra, por isso seriam eles tão imensos.
IMPRESSIONANTE pensar como é que este povo transportava estes blocos gigantescos de pedra, que pesam entre 80 e 270 toneladas. Inimaginável.
Agora, IMPRESSIONANTE mesmo é estar pela primeira vez cara a cara com os Moais. Não há foto, documentário na TV, pesquisa prévia que faça você não se espantar e se emocionar com a grandiosidade e energia dos gigantes de pedra Rapa Nui.


YASUR, o vulcão



“ - Oi, por favor, a gente está querendo voar até Tanna, mas eu queria saber qual a probabilidade de vermos o vulcão em atividade nessa época do ano.
- O vulcão entra em atividade todos os dias.
- Todos os dias? Como assim? O ano todo?
 - Sim.”
A atendente falava com a serenidade e a certeza de quem diz: “a fonte fica ligada no parque das 16 às 22h, todos os dias”. E nós mal podíamos acreditar. Tínhamos visto fotos do vulcão expelindo lava por todos os cantos de Port Vila, capital de Vanuatu, conjunto de ilhas perdido na Melanésia, ao norte da Nova Zelândia. Mas achávamos que a chance de presenciar aquele espetáculo era de 1 em 1 milhão.
Voamos no dia seguinte para Tanna, três horas num mini avião, mais quatro numa caminhonete por uma estrada prá lá de acidentada. Há alguns quilômetros de distância, de um platô, já podíamos ver a fumaça cinza-chumbo no topo do Yasur.
Ele é o segundo maior vulcão em atividade no mundo, e um dos mais acessíveis. Chega-se de carro e caminha-se apenas 5 minutos até o topo da cratera, para onde é permitido avançar contanto que a atividade do vulcão esteja no nível 1 (normal) ou 2 (moderada a alta). Tivemos a sorte de estar lá com o Yasur a nível 2 e presenciamos erupções magníficas, a ponto de termos vontade de refazer toda a via-sacra no final de tarde seguinte.
Nos dois dias de contemplação, sentimos o calor cada vez mais intenso da cratera, o cheiro cada vez mais forte, ficamos com o corpo e as roupas negros de fuligem. Na segunda visita, já estávamos lá há mais de uma hora quando um pedaço de rocha incandescente caiu a pouquíssimos metros de nós. Nos entreolhamos e, sem dizer palavra, entendemos que “já estava de bom tamanho”.
Voltamos à pousada sacolejando por mais quatro horas na estradinha esburacada, sentindo a felicidade plena que estas manifestações da natureza são capazes de produzir e que são a força motriz de viajantes inveterados pelo planeta.


Encontros


O navegante Beto Pandiani diz que várias vezes, em suas longas viagens, já sentiu ter velejado vastas distâncias apenas para cruzar o olhar com o de alguém.
Eu estava finalizando um livro meu, o “Ilhabela” (Editora Metalivros, 2010), e há meses esperava um chamado da Praia do Bonete me avisando, enfim, que alguma família resolvera fazer farinha, prática muito comum há alguns anos e praticamente extinta nos dias atuais.
Enquanto o chamado não vinha, ia explorando a ilha, fazendo as fotos que completariam o livro. Marcamos uma mini-expedição à Ilha da Vitória. Embarcamos numa traineira de pesca e, quatro horas depois, aportávamos nesta que é a mais distante das ilhas que formam o arquipélago de Ilhabela.
E aconteceu o inacreditável: Dona Dita – uma das caiçaras mais antigas da ilha – estava justamente, naquele dia, preparando-se para... fazer farinha! Com seus mais de 80 anos já tinha ido cedinho colher a mandioca na roça e naquela tarde estava marcada a “forneada”.
Não  me espanta imaginar que fiz o livro para ter a oportunidade de passar esta tarde dentro da antiga casa de farinha, ouvindo as histórias memoráveis de Dona Dita. Foi o que pensei ao me despedir desta senhora que havia conhecido apenas dois dias antes: recebi dela um dos abraços mais ternos que já experimentei.